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segunda-feira, outubro 18, 2021

Imaginário Tecnológico na Carta de Caminha – Parte I

Paulo Cezar S. Ventura


OLHAR ESTRELAS
Olhar estrelas: hábito útil
para orientar o rumo da singradura
ou simplesmente namorar
quando o mar não está para peixe.


Uma das formas de se buscar o conhecimento científico e técnico de certa época e determinada sociedade é através da literatura, pesquisando essas informações nas entrelinhas da narrativa literária. Já afirmei em texto anterior[i] que, em Os Lusíadas, publicado em 1572 por Luiz Vaz de Camões, encontramos vários versos concernentes a referências de eventos astronômicos do Hemisfério Sul.

O meu interesse em estudar a presença da Ciência, Tecnologia e Técnica na literatura vem desde minhas leituras da obra do escritor João Guimarães Rosa, pela riqueza de sua narrativa da natureza, da água e das estrelas do sertão de Minas Gerais. E a leitura do livro A Astronomia em Camões[ii], só veio corroborar meu interesse em ler as obras literárias de vários autores sob uma perspectiva diferente. Justamente a perspectiva de procurar, nessas narrativas, citações, explícitas ou não, de referências à Ciência, Tecnologia e, principalmente, às Técnicas enraizadas na cultura popular de uma época, que poderiam estar presentes nessas obras de escritores não especialistas.

E uma vez que a Carta de Caminha[iii] foi a primeira obra (literatura de informação) escrita no Brasil, a ideia de começar esta busca pela narrativa de Pero Vaz de Caminha foi uma justificativa ao menos motivadora.

Escolhi dois modos de leitura da Carta. Uma leitura focalizando palavras que remetem a informações sobre as técnicas de navegação e sobre as medidas de espaço e tempo através da Cartografia e da Astronomia; uma busca e leitura das referências literárias concernentes à historiografia e à filosofia das técnicas naquele momento histórico. A leitura, considerando a Carta de Caminha como literatura de informação, nos remete a uma série de relações entre os homens da época e suas percepções sobre a ciência e a técnica como as medidas de espaço e tempo, localizado na necessidade de buscar, armazenar e negociar novas mercadorias, e no imaginário cristão que considera o domínio do homem sobre a técnica.

(IM)POTÊNCIA

Homem sobre máquina
pensa ter dela a potência:
engana-se. Em imprudência,
perde-se na esquina

da vida, traquina.
Fica a máquina, que o domina.

 

Esses dois modos de leitura levam a quatro, ou mais, temáticas de pesquisa possíveis. Como não estou a escrever um relatório, apenas uma crônica, vou me ater a algumas curiosidades interessantes, a meu ver, nestas quatro temáticas.

1.      História das técnicas náuticas portuguesas e europeias – com uma quantidade enorme de publicações, sejam artigos ou livros, em várias línguas, enaltecendo a inteligência portuguesa no que se refere às navegações, tanto do ponto de vista técnico (construíram as caravelas que podiam navegar contra os ventos), quanto do ponto de vista político.

2.      Filosofia das técnicas naquele momento histórico – a Carta foi escrita em um momento importante da navegação portuguesa por vários motivos.  Um deles é que se iniciava, não apenas em Portugal, um movimento de distanciamento do saber técnico em relação ao saber científico. Os astrônomos, que calculavam os meridianos e escreviam as cartas náuticas se ressentiam das críticas dos marinheiros e pilotos.

3.      Semântica das palavras usadas na Carta - seguindo o critério de busca encontramos várias palavras que fazem referência a técnicas náuticas, a profissões existentes na área e outras palavras referentes à navegação em si, como: marinhagem, singraduras, ancoragem limpa, fazer vela, amainar e, ainda, a expressão “seguir de longo” referindo-se a um movimento para frente, diretamente.

4.      A questão das medidas de espaço e tempo na história das ciências –observa-se que Caminha nunca usa medida de tempo para se referir a um deslocamento do navio, sempre uma medida de distância. A inexistência de medida de tempo com mais precisão dificultava as medidas de posição no mar, mais exatamente as de longitude, pela necessidade de se conhecer as horas em diversos locais diferentes.

 

Na parte II desta crônica escreverei um pouco mais sobre essas quatro temáticas acima, trazendo dados interessantes em como a História da Ciência e das Técnicas lidam com a questão das medidas de espaço e tempo, exatamente por serem cruciais ao desenvolvimento científico. Escreverei um pouco também como as questões filosóficas dessas medidas aparecem na literatura de várias épocas.

Nem fim da história
nem fim da geografia,
apenas tempo e espaço.




MOURÃO, Ronaldo R. de Freitas. A Astronomia em Camões. RJ:Lacerda, 1998.

CAMINHA, Pero Vaz de. A Carta de Pero Vaz de Caminha: reprodução fac-similar do manuscrito com leitura justalinear. São Paulo: Humanitas, 1999.

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