Páginas

terça-feira, setembro 26, 2023

IMAGIÁRIO TECNOLÓGICO NA CARTA DE CAMINHA - PARTE II

Paulo Cezar S. Ventura

 

PARA SE PERDER NO MAR

Objetos para se perder no mar:

bússolas para desorientações acidentais;

velas para se agarrar aos ventos;

cordas para se amarrar em estrelas;

olhos para terras que não se avistam

nos horizontes perdidos das navegações.

 

Na parte I desta crônica[i] afirmei que escolhi dois modos de leitura da Carta de Pero Vaz de Caminha, considerada como literatura de informação. E esses dois modos de leitura levantaram quatro temáticas sobre as quais pesquisas podem ser feitas. Nesta segunda parte irei colocar mais alguns pontos destacados em minhas leituras e irei tecer mais comentários, físico que sou por formação acadêmica, sobre as questões de medida de espaço e tempo na Literatura. Retomando as quatro temáticas:

1.    História das técnicas náuticas portuguesas e europeias:

O Infante Dom Henrique reuniu em Sagres toda sorte de viajantes conhecedores de Astronomia, Cartografia e Náutica, desde judeus cristãos novos, comerciantes árabes, cavaleiros do templário expulsos da igreja católica, a navegadores de várias nacionalidades. E inventores. Ele conseguiu esse feito em momentos críticos de xenofobias, racismos diversos, caças às bruxas e Inquisição. E eles se baseavam em uma obra didática recordista de utilização em todos os tempos, que atravessou séculos. O livro de Johannes de Sacrobosco, publicado na segunda metade do século XIII, Tratatus de Spherae, teria tido uma influência muito grande entre os navegadores. Isso aliado ao conhecimento técnico dos regimes de ventos e das correntes marítimas, deu mais segurança às navegações.

2.    Filosofia das técnicas naquele momento histórico:

A carta de Caminha narra com detalhes os acontecimentos desde a saída da frota de Portugal até o dia de partida das terras brasileiras. Seu relato é minucioso, tem o talento descritivo de um etnógrafo. Como literatura de informação, a carta não é pródiga em metáforas, o que a diferencia de textos literários, mas está plena de suposições e de crenças de seu autor, deixando claro seu pensamento aristotélico, pensamento vigente na época, claro, além de sua filosofia cristã ao interpretar todos os gestos da população local como esvaecida de espiritualidade, quase como animais e que, portanto, estavam habilitadas a se cristianizar bastando, para isso, que o rei de Portugal enviasse padres e clérigos para a catequese desses.

3.    Semântica das palavras usadas na Carta

Uma interessante curiosidade do relato é que, em dado ponto, Caminha afirma que os nativos levavam nas mãos seus “cascavéis”. Ora, a cobra cascavel era desconhecida dos portugueses. De onda a palavra? Trata-se, na verdade, dos chocalhos indígenas, que em Calecute, destino final de Vasco da Gama, chamavam-se “cascavéis”.

4.    A questão das medidas de espaço e tempo na história das ciências

O Tempo não ocupa lugar no Espaço.
Se tens Tempo, tens Tempo,
não um lócus cartesiano.

 

Observa-se, na Carta, que Caminha não usa medida de tempo para se referir a um deslocamento do navio, sempre uma medida de distância. Por exemplo, em dado momento Caminha[ii] relata que “andamos todo aquele dia em calma, obra de três a quatro léguas”. Medidas de tempo, na época, eram feitas através de ampulhetas, relógios de areia que, a cada meia hora se esgotavam e deviam ser invertidas. Essa medida com a ampulheta era combinada com a observação do movimento do sol, quando possível. A inexistência de medida de tempo com mais precisão dificultava as medidas de posição no mar, mais exatamente as medidas de longitude, pela necessidade de se conhecer as horas em diversos locais diferentes, o que só veio a ocorrer com a invenção do cronômetro em 1735, por John Harrison, vencedor de um concurso lançado pelo parlamento inglês em 1714. Era natural, portanto, que as medidas de tempo e espaço se superpusessem.

O tempo sempre esteve presente, de forma implícita ou explícita, em todas as narrativas literárias. E as narrativas são influenciadas pelas definições e entendimento das medidas de tempo nas ciências físicas. Zigmunt Baumman[iii], por exemplo, afirma que a substituição das medidas de espaço por medidas de tempo, são um marco da modernidade. O que nos permite remeter à data de 1735, com a apresentação do cronômetro H1, de John Harrison. Seria esse o início dessa modernidade “líquida”, como sugere Baumman? E tudo muda de novo com o advento da Física Quântica, que volta a considerar as medidas de tempo e espaço interligados. E como fica o tempo, hoje, nas narrativas literárias?

“O tempo que eu hei sonhado

Quantos anos foi de vida!

Ah, quanto do meu passado

Foi só a vida mentida

De um futuro imaginado!

(Fernando Pessoa)



[ii] CAMINHA, Pero Vaz de. A Carta de Pero Vaz de Caminha: reprodução fac-similar do manuscrito com leitura justalinear. São Paulo: Humanitas, 1999

[iii] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário