Paulo Cezar Santos Ventura
Lá pelos anos mil novecentos e noventa e qualquer coisa eu fazia parte da Comissão de Vestibular da Universidade Federal de São João del Rei, época quando lá trabalhava. Os professores da comissão tinham uma sala especial onde pensar e redigir as questões, uma sala secreta de onde nada saía. Um deles, professor de Matemática, solta essa frase um dia – O vestibular poderia ter prova apenas de português e redação. Mostrem-me uma pessoa que sabe ler, escrever e interpretar que eu ensino-lhe qualquer coisa. – Desde então tenho pensado nessa hipótese, que pode ser um exagero, mas tem também muito de verdade. E usei a literatura como complemento para as minhas aulas de Física. Exemplos: O Nome da Rosa, de Umberto Eco, e Sherlock Holmes, de Conan Doyle, descrevem métodos de investigação, comuns às Ciências; Os Lusíadas, de Luiz Vaz de Camões, descrevem, pela primeira vez na literatura universal, estrelas do hemisfério sul inexistentes no hemisfério norte; Zen e Arte de Manutenção de Motocicletas, de Robert M. Pirsig, que muitos pensam ser um livro técnico, é sobre uma filosofia de vida.
Meu pai me ensinou a ler quando eu tinha cinco anos. Não tendo muito acesso a livros, ele era eletricista e lavrador, eu lia
tudo que aparecia em minha frente: revistas, jornais, gibis e livros
emprestados. No meu tempo de ensino primário e ginasial (nomenclaturas da
época) não era comum, nas escolas de periferia, a solicitação de leitura por
parte das professoras, além das cartilhas (muito boas). Eu, no entanto, fui
picado pelo mosquito das letras e era um leitor tão voraz que meu pai desligava
a luz da casa para que eu fosse dormir.
Lembro-me quando ele comprou uma enciclopédia chamada
Tesouro da Juventude, com dezoito volumes, e eu os li do primeiro ao último. O
Tesouro da Juventude era dividido em Livros, em todos os seus volumes. Um deles
era o Livro da Poesia e o primeiro poema era SE, de Rudyard Kipling, escritor
britânico nascido em Bombaim e Nobel de Literatura. A leitura foi tão
impactante que passei a escrever poemas a partir de então. Meu caderno de
poemas (que fim teve eu não sei) foi só crescendo em páginas e meu passatempo
favorito era escrever poemas para as meninas do colégio (a timidez me impedia
de entregar a elas). E os poetas passaram a fazer parte de minhas leituras de
todo os dias: Drummond, Thiago de Melo, Rilke, Ferreira Gullar, Mário Faustino,
Fagundes Varela, Mário de Andrade, Haroldo de Campos, Augusto de Campos e
muitos outros, foram os poetas de minha juventude.
Além dos poetas devorei também cronistas como Rubem Braga e
Pedro Nava, e romancistas como Machado de Assis, Lima Barreto, Fernando Sabino,
Graciliano Ramos, Jorge Amado, para citar apenas alguns. E na adolescência e
juventude, no auge da ditadura militar no Brasil, encontrei a contra cultura. E
todas as artes do chamado underground passaram a fazer parte de meu
repertório: o rock’n roll, os jornais Movimento e Versus, os cineclubes, Hélio
Oiticica, Wally Salomão e Cacaso, Torquato Neto, Jorge Mautner, Tom Zé e Sérgio
Ricardo, os Mutantes e Glauber Rocha.
Até que, um belo dia, caiu em minhas mãos um exemplar usado
de Sagarana, de Guimarães Rosa. Não entendi patavinas. A linguagem do homem do
sertão era muito distante do meu vocabulário. Pedi socorro a meu pai e ele
começou a ler em voz alta o conto O Burrinho Pedrês e me explicar vários dos
termos usados pelo autor. E como ele, um homem vindo da roça, filho de um
tropeiro que poderia ter sido personagem de Guimarães Rosa se tivessem se
encontrado, conhecia aquela linguagem? Meu aprendizado foi: a leitura vale um
diploma. Ainda bem que dele herdei essa qualidade.
Toda essa abertura contando um pouco de minha história com a
leitura e a literatura é para comentar a controversa frase de um famoso yotuber,
muito querido pelas crianças e adolescentes: quarenta e um milhões inscritos em
seu canal no Youtube, cento e quarenta mil curtidores de sua página no Facebook
e mais de treze milhões de seguidores no Instagram, um fenômeno de fato.
Segundo ele, os jovens não se interessam por literatura porque os professores
os obrigam a ler Machado de Assis nas escolas, uma leitura muito difícil. Se
problematizarmos a questão, o que não irei fazer, deixo apenas um comentário,
muitas teses poderão ser escritas sobre o tema (certamente já existem).
Meu caro youtuber, se eu recomendava a meus alunos lerem
livros de literatura e de divulgação científica para ajudá-los na compreensão
das Ciências, porque os professores de Português e Literatura não podem
recomendar (não obrigar) a leitura de Machado de Assis em suas classes, para
ajudá-los na compreensão da vida? Se garotos e garotas ingleses são
incentivados a ler Shakespeare; se os garotos e garotas espanhóis aprendem cedo
a ler Cervantes; se garotos e garotas argentinos apreciam um Borges e sentem
orgulho disso, porque nossos garotos e garotas não podem aprender a ler e amar
Machado de Assis, autor brasileiro reconhecido no mundo como um escritor
genial?
Sabemos que a estratégia dos professores da área,
principalmente para os alunos do Ensino Fundamental, é seduzi-los através de
procedimentos didáticos interessantes, como a contação de histórias, a
teatralização, e outras técnicas de letramento. E hoje temos romances de nossos
melhores autores em leitura comentada, em histórias em quadrinhos e em reescrituras
dos clássicos adaptados para jovens. E essas estratégias passam também, e
sempre, pela leitura de autores jovens, inclusive de youtubers que se comunicam
muito bem falando a mesma linguagem fragmentada dos meninos e das meninas. Eles
poderiam funcionar bem como escadas para se chegar aos Machados de Assis. Contribuindo
com a formação de leitores e, melhor ainda, de leitores que escrevem, a próxima
geração poderá conviver muito bem com Machado de Assis e Guimarães Rosa, como
aconteceu comigo.
Nossa torcida é que a trajetória deles, que se inicia em
mangás, quadrinhos e crepúsculos, chegue, “acredite se puder”, aos grandes
clássicos da literatura. Devanear e acreditar, é possível.
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